Diversidade e saúde mental são alguns dos temas abordados por Jaqueline Gomes de Jesus nesta entrevista. Ela é pesquisadora e professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Atualmente, compõe a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e preside a Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura (ABETH). Tem 15 livros publicados.
É ativista desde os tempos de estudante na Universidade de Brasília (UnB), primeira universidade federal brasileira a instituir cotas para pessoas negras, em 2003. Um momento histórico, do qual Jaqueline participou de maneira decisiva. Logo em seguida, foi a primeira gestora da diversidade para apoio de alunos cotistas, criando a estrutura para o que hoje é o Centro de Convivência Negra, na própria UnB.
Jaqueline traz, ainda, aspectos da pesquisa Sexual and gender minority mental health in low and middle income countries (SMILE), título em inglês para Saúde mental de minorias sexuais e de gênero em países de baixa e média renda. Esse levantamento é uma parceria entre IFRJ, Fiocruz e a Duke University, na Carolina do Norte. Jaqueline é coordenadora da pesquisa no Brasil.
Além do Brasil, quais países participaram da SMILE e qual o estágio atual da pesquisa?
Terminamos o projeto piloto, que durou cinco anos, do qual participaram Brasil, El Salvador, Vietnã, Índia, Quênia e Camboja. Agora, focamos o Brasil, Quênia e Vietnã, para coletar e analisar os dados com mais profundidade. Trabalhamos com grupos focais e amostragem. São milhares de pessoas de diferentes cidades desses países. A sintomatologia de saúde mental reúne quatro transtornos: depressão, ansiedade, estresse pós-traumático e suicidalidade. O objetivo é avaliar como aquela amostragem se diferencia de acordo com a orientação sexual e identidade de gênero.
Há algum comparativo entre Brasil e os outros países?
Nos países com altas taxas de depressão, como Quênia e a Índia, quando comparamos com a população em geral ou com grupos específicos, também analisamos fatores sociais. Na Índia, boa parte das hijas – mulheres trans e travestis – tem pouco suporte social. Por exemplo, acessos a aluguel de uma residência ou serviço de saúde são mais negados. No Brasil, há mais apoio social, mais organização das entidades, da comunidade. Mesmo com falhas, o apoio é maior do que na Índia, para comparar esses dois países. Ou mesmo em relação ao Quênia, onde depressão e ansiedade têm alta incidência, principalmente entre mulheres lésbicas. Esse apoio social auxilia o controle dos níveis de depressão e ansiedade. No caso da Índia, há uma questão histórica importante. Eles não são binários como no Brasil e entendem que há três gêneros: homens, mulheres e hijas.
É uma experiência milenar, de cerca de quatro mil anos, em que as hijas constituem uma categoria de gênero. Com o processo do imperialismo britânico e da colonização, elas ficaram isoladas, num contexto intenso de perseguição, lgbtfobia e transfobia. É impressionante a força da colonização: são milhares de anos de uma cultura com simbologias, divindades próprias, e há pouco apoio social para elas agora. No Brasil, há pessoas LGBT que, ao longo do processo de colonização, tiveram os nomes apagados. As pessoas não sabem porque isso não é ensinado no estudo da história, mas, desde antes da colonização, temos a diversidade sexual e de gênero, com diferentes nomes. No caso das hijas, o que chama a atenção é que elas são uma comunidade consistente, uma cultura consolidada há milhares de anos e, mesmo assim, o processo de colonização afetou a maneira como elas são apoiadas.
Há diferentes visões acerca da constituição dos gêneros?
Sim. A concepção binária, ou seja, homens e mulheres entendidos dentro de um determinado padrão de comportamento, foi uma imposição colonial europeia. Na própria Europa, até o século 16, havia apenas um gênero, o homem, aquela pessoa que tinha pênis e testículo, ou seja, eram os genitais que definiam o sexo, e por isso definiam como aquela pessoa se comportaria. Havia esse reducionismo da identidade da pessoa ao gênero dela, ao genital.O homem era o ser humano completo. As mulheres eram entendidas como um defeito de gênero. Há essa herança até hoje na língua portuguesa. Por exemplo, “homem” como sinônimo de ser humano. Houve uma transição dessa concepção, nos séculos 16, 17. Começaram a entender gênero de maneira binária e propagaram essa visão nas colônias, para culturas que não tinham necessariamente a mesma visão. Mesmo com essa transição ainda permanece esse padrão de reduzir as pessoas aos genitais.
Esse padrão interfere de alguma forma na pesquisa acadêmica?
Há uma discussão na biologia e já se sabe que o órgão genital não é necessariamente marcador de sexo biológico, mas o senso comum traz esse reducionismo, ainda muito presente, mesmo com a mudança de paradigma. Quando se discute a diversidade na universidade a partir do conhecimento histórico pautado por essa formação reducionista, ocorre a reprodução de padrões. A própria ciência reproduz porque ela não é isenta da cultura da sociedade onde é produzida. Se o pesquisador se baseia nesses estereótipos, vai reproduzi-los.
Uma vez que os fatores culturais e históricos contribuem para a construção da identidade do ser humano, de que maneira o histórico escravista da sociedade brasileira e o consequente racismo contra pessoas negras influenciam na formação da nossa identidade?
É importante lembrar que o Brasil passou por um processo de colonização muito particular, o de exploração. Os diferentes povos tiveram formas de resistência e sobrevivência ao processo de colonização e instalação do capitalismo. Somos frutos desse processo de mais de 500 anos, cuja base é o extermínio e a ocupação de territórios. Antes do extermínio, para justificá-lo, há o epistemicídio, que é a lógica do apagamento dos saberes, da forma de ser, é o não reconhecimento desses diferentes povos. Então, antes de ter a violência e a ocupação do território, houve o apagamento da identidade e da cultura. No Brasil, essa experiência terá um impacto mais explícito por causa da escravização em massa, um sistema nunca antes visto.
A partir daí houve a construção dessas identidades sob uma perspectiva europeia do que significa ser branco, negro, indígena. Os diferentes povos indígenas e africanos não se reconheciam como indígenas nem como negros. Foi uma forma de atribuição dos europeus para efetuar o epistemicídio. O que tem ocorrido é que, ao longo dos séculos, temos ressignificado não exatamente os termos, mas seus conteúdos. Por exemplo, os norte-americanos não usam o termo “negro”, eles usam “afro-americano” ou “afrodescendente”. No Brasil, continuamos adotando o termo, mas ressignificado. Hoje em dia, muito do que entendemos por ser negro, negra, não é igual ao que era no processo de colonização. Há também esse embate atual de não utilização do termo “índio”, como foi colocado pelo europeu. Essa experiência afetou nossa identidade, trouxe grande prejuízo, inclusive para a identidade nacional.
Como esse contexto afeta a saúde mental das pessoas?
Ao longo dos séculos, tem sido um grande desafio manter a saúde mental nesse contexto de adoecimento da própria sociedade. Na realidade, a diversidade inclui todas as formas de ser, de estar e de sentir, mas normalizou-se a ideia de que existem pessoas melhores do que outras, em função da cor, da orientação sexual.
Como essas questões interferem mais especificamente na saúde mental dos jovens?
O racismo tem impacto geracional. Nossos ancestrais já tiveram que lidar com violências geracionais. Quando analisamos a saúde da população negra, vemos que muitos agravos têm a ver mais com o racismo que afetou as gerações do que com características biológicas, como na ocorrência das doenças cardiovasculares, alergias, situações de abuso de álcool e outras drogas, para além das questões de herança genética propriamente, como na ocorrência da anemia falciforme. A análise de saúde mental tem aspectos históricos e precisam ser analisados no contexto em que vivemos. O jovem negro enfrenta o racismo estrutural. É estrutural porque a própria sociedade reverbera e reproduz. Além disso, a geração atual vive um contexto de neoliberalização da vida, em que cada vez mais as relações são individualizadas. Hoje temos mais acesso a profissionais de saúde mental.
Mesmo com o SUS precarizado, não dá nem para comparar, por exemplo, ao século 19, em que o acesso à saúde e a ideia de cidadania estavam vinculados ao ofício. Apesar disso e de haver mais acesso à tecnologia, os cuidados não são coletivizados. Nossos ancestrais tinham núcleos de cuidados: o terreiro, a comunidade cristã, o quilombo, a comunidade urbana, a família. É fundamental termos profissionais de saúde que trabalham com base em evidências, em método científico, mas o SUS, grande conquista do século 20, está precarizado, o que provoca impactos negativos na área de saúde mental.
Têm aumentado os dados de ansiedade e depressão, as pessoas se sentem perdidas. A resposta é muito individualizada. Por exemplo, a pessoa está sofrendo “porque não sabe empreender, não está se esforçando”. O grande fator da diferenciação da juventude de hoje para a de outras épocas é que os cuidados não são coletivizados, e isso é extremamente grave, porque os jovens dependerão mais de um sistema público de cuidado.
As perspectivas do conhecimento científico branco, colonial, oferecem instrumentos para compreensão da saúde mental de uma sociedade tão diversa como a brasileira?
Temos a vantagem do acesso a tratamentos e cuidados em saúde. Houve um desenvolvimento científico no sentido de construir estratégias e métodos de cuidado. O grande desafio é que ela foi pautada muito tempo por uma perspectiva brancocêntrica, heteronormativa, cisgênera. Por séculos foram utilizados como instrumento o pensamento social racista, lgbtfóbico. O método científico, em si, não é um problema, mas é como tem sido usado pelos colegas. Como eu falei, o processo de colonização foi antecedido pelo epistemicídio. Ainda hoje persiste o estereótipo de que apenas os europeus têm ciência, como se não houvesse produção de conhecimento sistematizado, seja de forma popular, seja como teoria científica, por outros povos.
Então, há esse contexto de cuidados em saúde, mas os pesquisadores precisam se abrir para uma perspectiva menos eurocêntrica. É difícil, porque as próprias estruturas das instituições – Fiocruz, por exemplo, e todo o sistema de pensar saúde e cuidados – são construídas nessa lógica: quem produz o conhecimento é o homem branco, cisgênero, supostamente heterossexual. Como se a própria população – as mulheres negras, LGBTs, indígenas – não produzisse conhecimento científico.
O ensino superior foi pautado no modelo europeu, inclusive desconsiderando a produção de saberes na África, Oriente Médio e Ásia. Então, é difícil para os colegas se desapegarem desse modelo e da ideia de que não estão falando por todos. É preciso tomar cuidado com essa posição, porque há histórico vinculado ao racismo científico, à psicopatologização de mulheres, de populações LGBT.